não faz mal
se realmente fores, eu terei todas estas palavras para te sentir de novo
terei a memória do teu cabelo por pentear e do teu peito despido naquela noite de domingo
se de facto não voltares mais, eu ainda me recordo do nosso último beijo e das últimas palavras que ouvi saídas da tua boca e da cor do céu nessa tarde
tenho comigo todas as músicas e a forma como elas me fizeram sufocar pela tua presença
há de ficar sempre o sabor do café e cigarros do teu hálito
a temperatura da tua pele a ferver em mim
a leveza dos teus lençóis brancos no meu corpo nu
não faz mal
se fores, as escadas na tua casa vão continuar a oscilar entre a ansiedade que era subi-las e a melancolia de descer. o portão saberá sempre a orvalho nas minhas mãos, com o sol a encher a madrugada de luz. o frio de sair dos teus braços será sempre eterno e nunca conhecerá a sensação de se extinguir na pura ação de ficar.
o teu nome vai sempre fazer-me estremecer da mesma maneira e levarei algum tempo a apagar as marcas que o teu toque deixou na minha pele.
mas não faz mal
um dia sais-me da memória sem que eu dê por ela, acordo e já não me lembro que exististe sequer. um dia olho para estas palavras e sorrio de ternura. talvez te mostre de que forma perpetuaste em mim durante tanto tempo. depois vais entender o peso das palavras e como é importante deixá-las escritas por muito que nunca passem disso mesmo, palavras insignificantes que ninguém se preocupa em ler. se não fossem as palavras eu nunca te teria voltado a tocar e ficarei sempre a dever-lhes isso.
por isso,
digo-te vai, respondo-te adeus.
e não faz mal
já nem me importo, quase já nem lembro
existirão sempre as palavras que não cheguei a tempo de escrever
terei sempre comigo as recordações que nunca chegámos a acabar de criar
tudo em mim já estranha a ideia de ti
a minha pele mudou de tonalidade desde a última vez que nos abraçámos
os meus olhos já só te vêem através de uma névoa de dor e desilusão
e decidi que ver sem lentes, filtros e véus é o tipo de autenticidade que nos falta
mas nunca da mesma forma como tu me faltas
tu faltas-me através das sensações mais puras
faltas-me na alma atormentada
faltas de mão dada com os meus fantasmas
e contudo
cada vez mais me convenço de que não faz mal
não faz mal se não voltares, se não me agarrares mais e que na tua língua a minha pele jamais se faça sentir
não faz mal se não ficares, se não ouvires mais a minha voz, ou o meu silêncio, ou o silêncio que a minha voz reproduz quando te falo agora
não faz mal se fores, se comigo não ficar nada teu a não ser algo que nunca aconteceu fora de nós, se não tiver como gritar ao mundo que fomos reais
não faz mal se me deixares, se todas as palavras ficarem sempre por ler, por muito que sejam lidas pelas multidões que nunca nos souberam como eu nos sei, se nunca conseguires tocar as letras que surgem à frente uma das outras ou entender como cada uma traz de ti uma parte
não tem problema
se tiveres de ir, vai
eu fico com isto.
com as palavras que resultam do teu abandono
com a poesia descontrolada
com o sono que ficou por perder
eu fico com o mundo que jurei um dia conseguir abarcar
com o peso dos oceanos nas mãos
e de toda a terra onde me afogo no peito
e assim poderás ir
sem que faça mal
quase já nem te sinto sequer
não faz mal
eu tenho as palavras
e nada nos conseguirá perpetuar melhor do que elas